Neste fim de trimestre, optamos por apresentar uma carta mais extensa que busca avaliar com maior profundidade o ambiente macroeconômico atual e seus impactos sobre os mercados. A conjuntura recente tem sido marcada por sinais conflitantes e mudanças rápidas de narrativa, o que exige uma leitura cuidadosa dos dados, da comunicação das autoridades monetárias e da reação dos preços dos ativos.
Dividimos esta carta em três partes. A primeira foca no comportamento do consumo e como pode influenciar as expectativas de crescimento econômico. A segunda examina as mensagens recentes do Federal Reserve e seus possíveis caminhos de política monetária. A terceira discute como os mercados estão tentando reprecificar riscos em meio a um pano de fundo mais volátil e assimétrico.
É importante destacar que os anúncios recentes relacionados ao Liberation Day, bem como os sinais pontuais de estresse, devem gerar repercussões mais claras nos mercados ao longo das próximas semanas. Esses desdobramentos, por ainda estarem em fase inicial, serão acompanhados com atenção e abordados em mais profundidade na próxima carta mensal.
Economia: Sinais Mistos e Ilusão de Resiliência
Nesta carta mensal, iniciamos com uma atualização sobre o ambiente macroeconômico, com foco especial no consumo — um dos principais motores da economia americana. Durante o primeiro trimestre de 2025, o consumo real cresceu apenas 0.2% anualizado, muito abaixo do esperado em 1.3%. Esse componente importante para as estimativas de crescimento do PIB tem se tornado cada vez mais difícil de interpretar, assim como outras variáveis importantes que influenciam as estimativas de lucro na bolsa e que guiam as decisões do Federal Reserve. Navegar o atual cenário complexo de incertezas envolvendo mudanças fiscais, políticas comerciais e sinais econômicos contraditórios não tem sido tarefa fácil. Nesse contexto, o comportamento do consumidor tornou-se mais difícil de decifrar — e, ainda assim, continua sendo essencial para entender os rumos da economia.
Uma das ormas mais simples de acompanhar o ambiente para os negócios e as perspectivas do consumidor é através do Livro Bege do Federal Reserve, o qual apresenta uma avaliação cautelosa no início de março. Enquanto a demanda por bens essenciais segue firme, os gastos discricionários mostram sinais de enfraquecimento, especialmente entre as famílias de menor renda. Empresários de diversas regiões relataram que os consumidores estão mais seletivos — trocando produtos por versões mais baratas, abrindo mão de extras e reagindo mais intensamente aos preços. A pressão foi mais evidente no varejo e no setor de restaurantes, com alguns distritos registrando o pior desempenho em janeiro dos últimos anos. O inverno rigoroso agravou ainda mais essa desaceleração, impactando negativamente os setores de lazer, turismo e o tráfego em lojas físicas. Essa fragilidade emergente no consumo chama atenção. Publicado oito vezes por ano, o Livro Bege reúne relatos qualitativos das 12 regiões do Fed e oferece uma visão antecipada de tendências econômicas que, muitas vezes, ainda não apareceram nos dados oficiais.
Ainda assim, interpretar essa desaceleração exige cuidado. Muitos distritos citaram o clima severo como um dos principais motivos para a queda de atividade em lazer, varejo e alimentação — o que torna difícil separar efeitos temporários de sinais estruturais. Essa ambiguidade ganhou respaldo com a divulgação do PMI Flash de março, que mostrou uma recuperação expressiva na atividade do setor de serviços com a normalização das condições climáticas. O índice de atividade subiu para 54,3, o maior nível em três meses, sugerindo que parte da fraqueza observada no consumo pode ter sido passageira. Por outro lado, a indústria voltou a contrair e a confiança empresarial caiu fortemente, alcançando um dos patamares mais baixos desde o final de 2022. O pano de fundo — com novas tarifas e cortes nos gastos federais — continua a gerar incertezas. Neste ambiente, distinguir ruídos temporários de mudanças mais duradouras é um desafio, mas permanece crucial para qualquer estratégia prospectiva.
O panorama industrial adiciona uma camada extra de complexidade. O forte desempenho da indústria em janeiro — refletido nos dados de PMI e nos relatos do próprio Fed — agora parece ter sido um movimento pontual. Parte desse vigor pode ter vindo da antecipação de pedidos, em meio ao receio de novas tarifas retaliatórias, especialmente nos setores mais integrados às cadeias globais. Com esse impulso inicial perdendo força, os dados de março mostraram uma reversão: o PMI industrial oficial caiu para 49, sinalizando contração na produção e fraqueza nas encomendas e no emprego.
Esse enfraquecimento também aparece em levantamentos do setor privado. O Indicador de Momentum Industrial do Bank of America, que havia se fortalecido após as eleições presidenciais, registrou sua terceira queda consecutiva. Esse indicador — conhecido por antecipar movimentos no PMI e nas revisões de lucros— reflete sinais de enfraquecimento em variáveis como o Índice de Transporte Rodoviário do BofA, expectativas de lucro e os preços do cobre. A atividade de frete voltou a níveis compatíveis com recessão no setor, enquanto os planos de investimento em capital fixo seguem sensíveis a juros e tarifas. Esses dados sugerem que a recuperação industrial precificada por alguns investidores pode precisar ser reavaliada, especialmente se essa tendência se estender para o segundo semestre. Sem uma retomada sustentada do momentum, é improvável que vejamos revisões positivas nas estimativas de lucro das empresas industriais.
O Fed e a Inércia do atual Cenário
Se o consumo tem dado sinais mistos e difíceis de interpretar — em parte devido ao clima, em parte por uma possível mudança de comportamento dos consumidores — a política monetária também se encontra em um momento de transição delicada, o que Jeff Gundlach, CEO da DoubleLine, conhecido como Bond King, chamou de “inércia” no momento atual. O Federal Reserve, diante de um ambiente econômico fragmentado, está adotando uma postura de equilíbrio entre riscos opostos: inflação que continua resistente e atividade econômica que mostra desaceleração moderada. Essa dualidade tem desafiado tanto os investidores quanto os próprios formuladores de política, além obviamente das incertezas na política comercial americana que têm trazido volatilidade para a bolsa e para as expectativas de inflação.
A reunião do FOMC em março reforçou essa postura. A taxa básica foi mantida inalterada entre 4,25% e 4,50%, com projeções medianas ainda apontando para dois cortes este ano. Mas o destaque ficou por conta do tom de Jerome Powell, que surpreendeu ao demonstrar menos preocupação com a inflação — mesmo após revisões para cima nas projeções do núcleo do PCE (agora em 2,8% para o final de 2025). Powell foi claro ao dizer que o Fed está em um ponto onde pode “manter ou cortar”, dependendo dos dados. É uma linguagem mais dovish do que muitos esperavam, sobretudo após surpresas recentes em dados de preços.
Além disso, o Fed decidiu reduzir significativamente o ritmo do aperto quantitativo (QT), cortando o limite de resgate mensal de Treasuries de US$ 25 bilhões para US$ 5 bilhões. Essa mudança, embora técnica, reduz levemente a pressão sobre a iquidez do sistema financeiro e estende o processo de normalização do balanço até 2026. Na prática, transmite uma sinalização: o Fed está mais preocupado com os riscos de desaceleração do que com a necessidade de endurecer ainda mais a política.
Para os mercados, o recado pareceu claro, no dia da reunião, inclusive, as bolsas apresentaram altas incomuns para o momento atual. A leitura predominante é de que o "Fed put" — aquela disposição histórica do banco central de proteger a economia — não está esquecida. Powell praticamente descartou a possibilidade de novas altas de juros, mesmo diante de pressões inflacionárias vindas de tarifas e custos trabalhistas. Essa assimetria reacendeu apostas em cortes a partir do segundo semestre, o que ajudou a puxar os juros longos para baixo.
Bolsa: Ajuste de Preços, Lucros e Narrativas
A combinação entre projeções estagnadas, dúvidas sobre o impacto dos novos pacotes tarifários e o início de uma desaceleração global ampliou o leque de cenários possíveis. Em momentos assim, o mercado tende a oscilar mais, o primeiro trimestre de 2025 não foi fácil, o índice S&P500 terminou o período com quedas próximas a 6%, enquanto o índice Nasdaq apresentou quedas próximas a 9%. As principais ações da bolsa, medidas através do NYSE FANG+ Index caíram mais de 14% no período.
Os investidores tentam precificar mudanças estruturais com base em premissas frágeis. Esse ambiente ilustra o aumento da volatilidade nos ativos de risco, especialmente nas ações, onde o tema central tem persistido no impacto das tarifas sobre os lucros corporativos. A forma como as empresas irão absorver ou repassar esses custos — seja via preços, margens, cadeias de fornecimento ou demissões — pode alterar drasticamente o equilíbrio entre crescimento e inflação. As principais ações hiperescaladoras e ações envolvidas em temas inovadores, como inteligência artificial, também enfrentam desafios quanto aos retornos nos investimentos projetados na última janela de apresentação de resultados.
Temos a impressão que as teses que agradaram aos investidores desde 2023 começaram a perder tração conforme o pano de fundo macroeconômico se coloca cada vez mais desequilibrado: crescimento possivelmente desacelerando, inflação mais persistente, política fiscal em transição e riscos geopolíticos latentes. A confiança nas projeções caiu — como mostra, por exemplo, o Citi Economic Surprise Index nos EUA, que atingiu no fim de fevereiro o pior nível desde setembro de 2024, refletindo o rápido acúmulo de decepções nos dados que o mercado considera importante.
Esse desconforto é amplificado quando prêmios de risco estão baixos, como estavam em janeiro, tanto em ações quanto em crédito. Quando não se exige retorno adicional para carregar ativos arriscados, qualquer frustração vira gatilho. Como se não bastasse, janeiro também foi um dos meses com maior otimismo por parte do investidor de varejo em relação à compra de ações — algo que, mesmo nas entrelinhas, nunca devemos descartar como sinal de maturidade de ciclo.
Os dados de fechamento de fevereiro compilados pela Morgan Stanley reforçam essa mudança de humor: houve uma forte deterioração nas revisões de lucros para os principais índices, incluindo Nasdaq-100, S&P 500 e Small Caps. As empresas menores e as de tecnologia, em especial, sofreram com margens comprimidas, dólar forte, incertezas fiscais e a pressão de um novo regime tarifário. O S&P 500, por exemplo, já viu suas estimativas de lucro para o 1T25 caírem 3,5% desde o início do ano — e há expectativa de novas revisões negativas nas próximas semanas.
Em paralelo, o gráfico de surpresas nos dados de crescimento e a taxa dos Treasuries de 10 anos ajuda a ilustrar a transição: os yields caíram de forma relevante, acompanhando o enfraquecimento dos dados econômicos — uma indicaçãode que o mercado já antecipa menor tração da economia nos próximos trimestres. A convergência entre essas duas dinâmicas — lucros e crescimento — reforça o cenário de desconforto. O consenso de mercado já reduziu as perspectivas de crescimento do PIB americano para 2025 e 2026, a OECD já revisou a projeção de PIB global para baixo também recentemente.
O pano defundo é de um mercado tentando se “reprecificar” ainda com informações incompletas. O resultado natural é mais oscilação. E se os prêmios de risco não forem reavaliados de forma ordenada, o mercado pode buscar um novo equilíbrio através de correções mais bruscas.